Maria Teresa Marques
(1938-2011)

 
 

Vem a propósito dizer que, após a partida desta Mulher – partida que todos faremos porque apenas estamos em lista de espera – e a que não pude estar presente por impossibilidade física, pese embora a isso me sentir obrigado perante Ela e, mais do que isso, perante mim próprio, não será atrevimento afirmar que, quem mais conviveu com a Maria Teresa, ao menos do ponto de vista profissional terei sido eu.

Ainda muito tocado pelo acontecimento, não obstante a sua inexorável e previsível inevitabilidade e, ainda que percursos diferentes e circunstâncias diversas de vida, sejam impeditivos de acompanhar amigos que, lado a lado, connosco caminharam em largos troços do percurso pessoal e profissional, aqui me curvo à sua Memória com meia dúzia de palavras sentidas, sempre insuficientes para a homenagear      

Foi minha colaboradora directa, de excelência, na ponte aérea Nova Lisboa (Huambo) - Lisboa, que coordenei, entre Julho e Novembro de 1975; foi minha Secretária no IARN (Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais) de que fui dirigente de topo, entre Fevereiro e Novembro de 1976; foi minha Secretária no Gabinete da Área de Sines, entre Outubro/Novembro de 1976 e 1980; foi secretária do Secretário de Estado da Administração Escolar, do Ministério da Educação e do Ensino Superior, de que eu fui Chefe de Gabinete, em 1981/1982. Enfim, fui eu que a sugeri para colaboradora do Secretariado a AORN quando exerci os cargos de Vice-Presidente e de Presidente da Associação.

Em conclusão: quase 40 anos de contactos profissionais e de Amizade…!

Porque cito tudo isto? Porque, para além do que a seguir se dirá, entendo que esta é a melhor homenagem que, no âmbito da AORN se lhe poderá prestar.

Faço-o, obviamente em nome da Instituição mas também, muito especialmente, em meu nome pessoal.

Conheci esta pequena Grande Mulher em Julho de 1975, em Angola, Huambo (ex Nova Lisboa) na fase em que se desenhou a Ponte Aérea Nova Lisboa/Lisboa cuja Comissão de Voluntários tive a dita, “porque tudo se soma, nada se perde”, de coordenar.

Apenas para relevar o perfil da Senhora que ora se homenageia é preciso que se diga que a então Nova Lisboa considerada a cidade da “paz”, com cerca de setenta mil habitantes teve de albergar mais cerca de setenta mil almas, de todas as cores, que vinham fugindo da autêntica balcanização de Angola, sobretudo, na faixa a norte do rio Cuanza.

Na impossibilidade de se evacuarem por terra os milhares de desalojados já então legalmente caracterizados por “retornados”, em razão dos confrontos armados entre os movimentos ditos de libertação (Nova Lisboa /Huambo viu-se, de um momento para o outro, “cercada” por tais confrontos, num raio de cerca de 80/100 quilómetros) estabeleceu-se Ponte Aérea directa a Lisboa, por onde se “drenaram” cerca de cem mil refugiados.

A Comissão de Desalojados, promovida pelo então Alto-Comissário de Angola, cuja coordenação a mim foi atribuída, não em virtude de qualquer mérito especial mas por razões meramente circunstanciais, constituiu-se, como é óbvio, exclusivamente por civis voluntários já que, com o poder na rua e com as estruturas administrativas a paralisarem, dia após dia, apenas restavam os militares, também cada dia mais fragilizados que, por razões ditas político-militares não pretendiam assumir tal responsabilidade.

“Veio parar” à Comissão (que atingiu um volume de cerca de 200 voluntários) a Maria Teresa.

Revejo-a e à família. Três filhos, em escadinha: O Nuno, a Paula e a Solange, não recordo muito bem, mas creio que entre os cinco e os 7/13 anos. Naturalmente, também, com um Marido.

Dos Filhos, a que deu origem sei pouco. Mas vale a pena dizer que o varão é Oficial de Marinha e já – como o tempo leva o tempo, meu Deus! – Oficial Superior!

Como se poderá imaginar tenho escritas algumas páginas da “estória” da minha vida que incluem também alguns dos meus heróis.

De entre estes repesquei a heroína que aqui pretendemos homenagear. E é com algumas dessas páginas, apenas alteradas no que o senso me aconselha que pretendo que nos reclinemos perante um excepcional perfil de Mulher e de Cidadã.

Páginas que o Tempo não levará

“A Comissão de Repatriamento da Comissão Nacional de Apoio aos Desalojados (CNAD) chegou a integrar cerca de 200 colaboradores voluntários.

Porém - e porque muitos se ofereciam apenas para conhecer os meandros que lhes permitissem fugir - acabou por reunir cerca de dúzia e meia de “pedras-chaves”, o núcleo duro da Comissão, constituído por gente altruísta que fez ponto de honra em permanecer até ao fim ao lado do Coordenador. Um dos elementos considerados imprescindíveis, era a Secretária. Mulher de trinta e cinco anos, mais bonita do que feia, olhos expressivos, intensos, com uma cara fresca, vistosa e, sobretudo, determinada e eficaz. Casada, era o protótipo da Mulher Matriarca.

O marido, homem bom, não era colaborador da Ponte Aérea, continuando com todo o idealismo, a tentar dar continuidade a uma empresa já moribunda e sem qualquer viabilidade. A Maria Teresa era bancária. Só que o seu Banco já tinha fechado as portas. Ofereceu-se voluntariamente para a Comissão de Repatriamento e exercia, simultaneamente, duas funções: coordenava a área de triagem final dos “desembaraços” e secretariava o Coordenador, com quem havia feito um pacto de honra: só abandonaria Angola quando o Coordenador o fizesse.

É óbvio que se havia programado um voo destinado a assegurar que, aquela dúzia e meia de voluntários da CNAD e o pessoal da Cruz Vermelha tinham os seus lugares garantidos no último avião – ficasse quem ficasse... Era legítimo e o mínimo que se podia garantir a todos quantos não abandonassem a Comissão (optando por fugir, nem que fosse no “cockpit” de um qualquer avião português ou de país amigo) quando vissem os seus problemas resolvidos ou quando fossem já incapazes de controlar o medo.

Uma Mulher das Arábias, sobretudo em discurso directo

A Maria Teresa girava com à vontade, entre a cidade e o aeroporto, “deitava a mão” a todos os problemas com que deparava e ganhou, por si mesma, estatuto de respeito, nomeadamente, perante o Coordenador que nela depositava incondicional confiança.

Em finais de Setembro, já o ambiente, na cidade estava muito degradado, com o poder, literalmente na rua.

A família vinha há uns dias pressionando a Maria Teresa a embarcar para Portugal com o argumento de que Ela já havia cumprido a sua obrigação e de que não era razoável sujeitar-se os miúdos àquela pressão e a eventuais riscos de vida. O Coordenador sentia também a pressão familiar junto da Secretária e já lhe havia dito claramente:

- Maria Teresa: não pretendo que por razões de honra e fidelidade funcional degrade, eventualmente, relações familiares.

- Quando entender que chegou o momento de partir, só lhe agradeço que me avise com o mínimo de antecedência.

Resposta da Maria Teresa:

- Já não lhe disse, Chefe, que vou consigo no avião onde formos todos. Está dito e é para cumprir.

Passados uns dias, a Maria Teresa procurou-me no meu gabinete e, de rompante, disparou:

- Chefe: vou hoje, no 2º avião, a Portugal levar família e os miúdos. Vou deixá-los em Tomar com os meus sogros e depois de amanhã estou de volta.

Olhei para Ela com um misto de admiração e descrédito e disse-lhe:

- Maria Teresa não precisa de me dar qualquer explicação. É justo que se vá embora, agora tentar convencer-me de que vai a Portugal, “depositar” a família e os filhos e que, uma vez em Tomar, a família permite o seu regresso – é um completo absurdo! Vá-se embora porque é legítimo que o faça, mas não me dê esperança de regresso.

Olhou-me de frente com laivos de raiva e de comoção e com as lágrimas a bailarem-lhe nos olhos e ripostou, com dignidade e alguma dureza:

- Não lhe admito, Chefe, que duvide de mim. A família e os miúdos estão ali fora e querem despedir-se de si.

Mandei-os entrar, dei um beijo aos miúdos e um abraço à família, dei também um beijo à Teresa e disse:

- Boa viagem e até breve. Lá nos encontraremos, se a Providência deixar. Mas, não deixem a Maria Teresa regressar. Um dos elementos da família sempre disse:

 - Sei lá, Doutor a tipa é maluca! Já sabe como ela é! ...

Acompanhei-os ao aeroporto e à placa, subi as escadas do avião (já que foram os últimos a entrar) permaneci à porta junto do Comandante enquanto se instalavam e, dada luz verde para que o avião partisse ainda os ouvi dizer.

- São mais uns que se vão, não é, Doutor?

-É verdade!

Acenei-lhes com a mão e desci as escadas com a certeza absoluta de que acabava de ficar sem o meu braço direito.

Passadas 48 horas aponta um avião à pista, em ocultação de luzes (eles aterravam sempre com ocultação de luzes não fosse o diabo tecê-las…) e eu aguardo na placa a manobra do aparelho que, de acordo com o seu “ordermove” deveria trazer de Portugal vários géneros alimentares e leites para as crianças.

O avião manobra, imobiliza-se, o pessoal de terra encosta-lhe a escada, eu aproximo-me (pronto a receber a confirmação de que os géneros e, sobretudo, o leite vinham) abre-se a porta e, de imediato, lá em cima, vejo a silhueta da Maria Teresa !!!

Ela desce as escadas, no seu habitual passo apressado, pisando com ar seguro e desenvolto para junto de mim para, com postura de desafio, dizer:

-Então, Chefe? Era eu que já não voltava? Como vê, aqui estou. Inteirinha.

Emocionei-me, abracei-a e não contive o que me saiu pela boca fora:

- Mulher das Arábias. Se fosse um homem tinha de lhe dizer que os tinha no sítio.

Deslocámo-nos para o hangar em passo estugado (esperavam-nos montes de problemas) com o meu braço por cima dos seus ombros.

 Ela, a minha pequena Grande Secretária merecia a ternura do Chefe.

 E a sua Grande Admiração.

 É sobre esta Grande Senhora que temos, todos, de nos reclinar.

Agosto 2011
 

 

Marques Pinto, 8º CEORN

 

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