Ernâni Rodrigues Lopes
(1942-2010)

 

 

 

 

 

A melhor forma de o “manter vivo” entre nós é procurar consolidar a AORN, instituição a que ele se dedicou sempre de alma e coração

Artur Santos Silva foi camarada de curso de Ernâni Lopes, seu companheiro de militância política, amigo de uma vida quer na privacidade, quer na carreira profissional. Foi, pois, convidado pela Revista da AORN para ser entrevistado, precisamente, sobre o seu curso e a vida militar na Marinha, convite que aceitou de imediato. E deixou uma mensagem, como legado, para a instituição que ajudou a criar: consolidar a AORN.

1) Como verificou, durante o curso, que o Ernâni Lopes era uma personalidade excepcional no conjunto daqueles cadetes seus camaradas?

Ernâni Lopes cedo revelou no curso feito na Escola Naval, durante 6 meses, ser um homem de dimensão rara. Integridade de carácter, firmeza de convicções,  valores muito sólidos, grande lealdade, sentido de serviço e de rigoroso cumprimento do dever, muito inteligente, excepcional capacidade de trabalho, simples e afável, humano, respeitado também pela sua natural capacidade de liderança, quer por nós, quer também nas relações com os cadetes de carreira, onde gozava de grande prestígio.

2) Recorda-se de algum episódio que possa reflectir a forma como  Ernâni Lopes terá interpretado a sua passagem pela Marinha em cumprimento do Serviço Militar Obrigatório?

Foi com a maior naturalidade que todos antecipámos que o Ernâni seria o vencedor do Prémio da Reserva Naval, anualmente atribuído. Não pela sua performance nas actividades físicas, onde era dos que menos se distinguia, mas pelo aproveitamento excepcional que revelava nas matérias teóricas onde era sempre um dos melhores e, em especial, pela forma como se distinguia em espírito militar.

Recordo bem o esforço extraordinário que estoicamente realizava, treinando para melhorar os resultados nos seus testes de ginástica. Nunca esquecerei a nossa viagem de um mês, no final do Curso, na Fragata “Diogo Cão”, durante a qual todos enjoámos imenso sobretudo até à Guiné. O Ernâni, mesmo assim, era o único que com o maior sacrifício não deixava de cumprir todas as tarefas que lhe estavam atribuídas nos turnos à ponte – no leme, no sonar ou nas agulhas.

3) Em que medida o SMO contribuiu para o sentido de Estado que vos caracteriza e, em particular, o Ernâni Lopes?

Estou certo que todos beneficiámos muito com a passagem pela Marinha, reforçando o espírito de disciplina, a capacidade de organização, o rigor na execução de tarefas, o companheirismo e espírito de equipa, a pontualidade e o respeito pelos outros. Gostaria de destacar a forma como nos relacionámos com as guarnições, fossem oficiais, sargentos ou praças. A Marinha era e é uma arma de elite em que a preparação para vivermos numa embarcação, mais isolados, fomenta o relacionamento com os outros, o bom entendimento, a solidariedade e a procura de compromisso na forma de estar e de agir. E estas preocupações, seguidas ao longo da vida, foram, são e serão regras de conduta da maior valia.

Gostaria de salientar que, quando em boa hora o Ernâni Lopes foi convidado para Ministro das Finanças do Governo do Bloco Central – e onde revelou publicamente a sua excepcional dimensão de estadista num período dramático da nossa História mais recente –, deu uma entrevista ao “Expresso” onde confessou o quanto tinha beneficiado na sua passagem pela Marinha e como procurava no seu quotidiano respeitar os princípios do rigor, de bem executar as missões profissionais, na linha do que tinha aprendido a saber valorizar na sua passagem pela Marinha (“talent de bien faire”, o lema da Escola Naval).

4) A hierarquia da Marinha (professores, formadores, comandantes) considerava, naquela altura, Ernâni Lopes um jovem oficial que se destacava?

Foi logo evidente que os nossos excelentes professores – como os Comandantes Leão dos Anjos e Diogo Afonso, bem como o nosso Director de Instrução, o Comandante Seixas Louçã, que com todos nós tinha um excelente relacionamento – viam no Ernâni uma pessoa de eleição. A forma como o ouviam, o claro reconhecimento da sua superior estatura moral e intelectual era claramente percebido.

Também durante a nossa viagem no final do curso, o Comandante da Diogo Cão Vasco Rodrigues, que tinha sido Governador da Guiné, e o Imediato tenente Leiria Pinto tinham longas conversas com o Ernâni que revelavam a estima que também lhes merecia.

5) Sentindo-se já a ausência do Ernâni, o que devemos fazer (AORN) para o "manter vivo" entre nós?

O Ernâni soube criar com muitos de nós uma amizade que se aprofundou ao longo da vida. Para além dos que já eram seus colegas na licenciatura no ISEG, os três licenciados em Direito – Rui Machete, Bernardo Lobo Xavier e eu próprio – viemos a desenvolver especialmente com ele e entre nós relações de grande amizade.

Desde o início da minha carreira bancária, que logo se seguiu à conclusão do SMO, contactava com frequência o Ernâni para melhor perceber certas crises cambiais – v.g. da libra, do dólar, do franco francês – ou a evolução da nossa situação política e económica.

Depois da Revolução de 25 de Abril tivemos um trajecto político comum no PPD de que ambos nos viemos a desligar.

Na carreira diplomática como Embaixador em Bona, muito me ajudou a abrir portas junto de investidores institucionais quando iniciei o projecto que conduziu à criação da SPI, hoje BPI. Mais tarde, foi com o seu apoio, como Embaixador junto das Comunidades Europeias, que consegui estabelecer uma relação de grande profundidade com o Banco Europeu de Investimento, a qual ainda hoje se revela de primeira importância.

Pela vida fora mantivemos estreitos contactos profissionais e pessoais que me levam a considerar Ernâni Lopes um dos nossos melhores - Homem Bom e Homem de Bem. Com um sentido do bem público insuperável. Com uma Fé inabalável e uma coragem moral invulgar.

A melhor forma de o “manter vivo” entre nós é naturalmente recordar o seu exemplo e, em especial, procurar consolidar a AORN, instituição a que ele se dedicou sempre de alma e coração.

O seu saber e paixão pelo Mar, grande recurso natural do nosso País tão insuficientemente explorado, devem estimular muitos de nós a aprofundar o nosso interesse para esta área tão importante e necessária valorização do nosso património e das nossas riquezas.

A AORN devia manter na sua agenda permanente iniciativas com vista a discutir e a estudar a estratégia do Mar.

 

 
 

Artur Santos Silva
7.º CEORN




Quando o interesse nacional estava em jogo, não havia compromisso
 

O Ernâni (sem h, como sempre dizia a quem lhe punha aquele”prefixo”) era um Homem (aqui sim, com um H e grande) multifacetado. É, portanto, difícil falar dele em espaço tão curto!

Convivi com ele como aluno – em que tive de suportar uma oral de 45 minutos para subir a nota de Doutrinas de 14 para 15 e, mesmo assim, só o consegui à custa de uma dissertação sobre  Stº Agostinho …- como assistente, numa equipa de mais de uma vintena, que passou muitas horas de rabo para o ar num imenso corredor a fazer colecções de “ Unidades Lectivas” para distribuir aos alunos e, numa fase posterior, como membro de um conjunto de pessoas que negociaram a nossa Adesão às Comunidades Europeias. Felizmente, esta convivência transformou-se numa sólida e tolerante amizade recíproca.

 

 

Ernâni Lopes, ladeado por António Marta e Cabral da Fonseca (Director do Secretariado para a Integração Europeia)

 

Dos muitos desafios em que com ele participei, lembro-me de um que não é muito conhecido e caracteriza bem a sua firmeza quando estava convencido de ser esse o caminho certo para defender os interesses de Portugal.

Estávamos no primeiro trimestre de 1985, com uma data já escolhida para a assinatura dos Tratados da nossa adesão à CEE- Junho desse ano – para que a entrada efectiva ainda pudesse ser, em simultâneo com a Espanha, em Janeiro de 1986. Era, supostamente, a última ronda ministerial e só faltavam os “ dossiers” das Pescas e das Relações com a Espanha.

As reuniões ministeriais eram precedidas de reuniões de suplentes ( os Representantes Permanentes dos 10 Estados Membros e a Comissão, por um lado, e os Secretários de Estado dos Candidatos com a sua equipa, por outro) nas quais se “partia pedra” e se deixavam apenas algumas questões para “Ministro decidir”.

 

 

Na assinatura do Tratado de Adesão à CEE, em 12 de Junho de 1985: Ernâni Lopes, Rui Machete, Mário Soares, Jaime Gama e António Marta

 

Quando a Comissão, que dava o apoio técnico aos EM, nos apresentou, na própria reunião, o que era, totalmente, inédito, a sua proposta para encerrar o “dossier” Pescas, pedi um período de quinze minutos para tomarmos conhecimento da Proposta. Não foi preciso tanto tempo para que a delegação portuguesa ficasse estupefacta e olhássemos incrédulos uns para os outros. Com efeito e para resumir, a proposta consistia em que nem Portugal pescava nas águas comunitárias, nem os EM pescavam nas nossas águas; por outro lado, os espanhóis também não pescariam em águas comunitárias. Mas, em contrapartida,  a poderosa frota espanhola poderia pescar sem restrições nas águas portuguesas!! Foi também referido, “ en passant”, que os espanhóis, que também tentavam nesse momento e lugar encerrar as negociações, já tinham aceite aquela proposta e com o nosso “sim”encerrar-se-iam as negociações e íamos todos beber o “champanhe”.   Além de inaceitável, a proposta fazia tábua rasa de todas as posições acordadas em negociações anteriores sobre este assunto,. Pedi uma interrupção, saí e fui falar com o Ernâni que esperava notícias com o seu inseparável cachimbo. Entendeu, de imediato, que aquela proposta era a maneira que os EM tinham encontrado para, durante um período transitório de 7 a 10 anos, se verem livres da ameaça da frota pesqueira espanhola.

Combinámos que eu iria para dentro e apenas diria que não tinha delegação para “negociar” uma proposta nova que nada tinha a ver com os múltiplos contactos e trocas de correspondência anteriores e que, portanto, todo o “dossier” tinha que “transitar” para a reunião de Ministros.

Passadas algumas horas, a Delegação portuguesa foi convidada para a reunião de Ministros (dos Negócios Estrangeiros) com o Sr. Andreotti na Presidência dos EM e o Ernâni na Presidência da Delegação do candidato Portugal.

 A reunião começou com o Presidente Andreotti a apresentar a “excelente” proposta que poria fim às negociações dos dois candidatos, que tinha sido feito um grande esforço para ir ao encontro das preocupações de Portugal,…, blá blá, blá blá, blá blá.

 

 

A equipa envolvida nas negociações

 

Depois de um intróito demorado e realçando, repetidamente, os esforços de aproximação, o Presidente passou a palavra à Delegação Portuguesa. O Ernâni agradeceu e, sem olhar para o documento, mas olhando, fixamente, para o Sr. Andreotti que estava à sua frente, disse qualquer coisa do género : Sr. Presidente, a reacção definitiva da Delegação Portuguesa à proposta que hoje nos foi apresentada, é a de que a mesma é totalmente inaceitável e inegociável, quer no todo, quer nas partes.

A estupefacção na sala foi generalizada e começaram todos a olhar uns para os outros. O Presidente tentou várias vezes reabrir o diálogo, mas o nosso amigo Ernâni mantinha-se firme e apenas repetia, monocordicamente, aquela mesma frase. O impasse, o frio e o silêncio ensurdecedor eram difíceis de sustentar, mas o Ernâni punha uma cara de pau e mantinha firme o olhar.

Após minutos que pareceram horas, o Presidente suspendeu a reunião.

A Delegação Portuguesa foi esperar para a sua sala e passados poucos minutos e, apesar do adiantado da hora ( era madrugada), Lisboa já sabia o que se tinha passado e quem  comunicou (creio que o MNE francês) teria acrescentado que a Espanha iria encerrar as negociações e que Portugal corria o risco de “ perder o comboio”. O Ernâni apenas dizia, mas enfaticamente, que não seria com a sua assinatura que se encerraria aquele dossier que nos fora proposto. Nessa noite não houve (felizmente) “ champanhe”, o que viria a acontecer um mês depois já sem aquela “proposta indecente”.

Esta atitude firme daria mais tarde os seus frutos: não só Portugal assinou e aderiu na data prevista como, sobretudo, pode preservar as suas águas costeiras da frota espanhola durante um período de cinco a sete anos, período esse que deveria servir para nos prepararmos para a aplicação integral da “Política Comum das Pescas”.  

Lisboa, 22 de Abril de 2011
 

 
 

António Marta
15.º CFORN


 


Um amigo estadista

 

O Ernâni Lopes tinha, como poucos, o sentido do serviço público e do dever de Estado. Para ele, o bem comum não constituía uma figura de retórica, mas um valor sério pelo qual pautava grande parte da sua vida e para cuja realização estava disposto a sacrificar-se. Provou-o, aliás, ao longo da sua existência.

Na escala axiológica por que se guiava, amar o seu país era uma das formas de amar a Deus. Não havia contradição entre esses dois deveres. Representava um dos elementos da síntese que sempre guiou a sua conduta.

 

 

Rui Chancerelle de Machete, Ernâni Rodrigues Lopes e Artur Santos Silva

 

Foi assim, logo no início, como docente do ISEG, regendo em tempos conturbados, cadeiras de economia, foi também assim no cumprimento do serviço militar obrigatório, na Marinha, onde nos conhecemos.

Foi sempre com espírito de servir que desempenhou funções no Gabinete de Estudos do Banco de Portugal. Um pouco mais tarde, pondo acima das comodidades da vida, a defesa dos interesses nacionais, como Embaixador, primeiro em Bona depois em Bruxelas, defendeu com competência e apaixonadamente os interesses de Portugal. As negociações que ultimaram o longo processo do ingresso de Portugal nas então Comunidades Económicas Europeias, que realizou por forma brilhante, atestam-no por forma insofismável. Ficou talvez mais conhecido por ter sido Ministro das Finanças na Coligação PS / PSD, o chamado Bloco Central, e em que desempenhou papel determinante na ultrapassagem da crise financeira que então se viveu. Após essa parte mais pública da sua carreira, dedicou-se como Professor na Universidade Católica, a formar jovens que compreendessem o significado que revestiu para Portugal ter-se tornado membro da União Europeia.

 

 

O 7,º CEORN, com destaque de Ernâni Lopes (1), Artur Santos Silva (2) e Rui Machete (3)

 

Mas, porventura o mais importante da sua vida, foi o exemplo que legou de coragem, de persistência e de coerência na realização dos valores que desde a juventude assumiu como os mais relevantes: Deus, o seu País e a sua Família. A forma simples e humilde como aceitou a doença e a combateu sem revoltas nem desânimos até onde pôde, constituiu para todos os seus amigos um exemplo magnífico de um ânimo forte e de uma personalidade sensível.

Pelas suas virtudes públicas e privadas, os seus amigos não o esquecem.

Lisboa, 3 de Junho de 2011
 

 
 

Rui Chancerelle de Machete
7.º CEORN




A família : Um imenso  mar interior
 

"Disciplina, Trabalho e Paixão, Tudo Vencem". Esta divisa escrita pelo Ernâni quando era ainda muito jovem estudante ficou na minha memória desde a altura em que o conheci, tinha eu quinze anos. Verifiquei a importância e o sentido dessa divisa durante cerca de cinquenta anos, período durante o qual o Ernâni se tornou numa espécie de meu irmão mais velho e referência para a vida. Fui seu aluno e assistente. Acompanhei-o desde os tempos em que ele, ainda estudante, vivia com os Pais e em que começou o namoro com a Isabel. Fui testemunha da admiração pelo sogro, o Professor Arsénio Cordeiro, como Mestre de erudição e sabedoria. Segui de perto o crescimento dos filhos, a Sofia, a Maria e a Leonor, sou padrinho de um deles, o Francisco, e de uma neta, a Isabelinha.

Não se pode falar sobre o Ernâni ou um dos aspectos da sua vida, em particular a Família, sem uma referência àquilo que, no meu entender, eram os elementos estruturantes do seu pensamento. De facto, o que ele dizia (e fazia) era sempre, mas sempre, guiado por uma exigência de coerência com os princípios que ele próprio, num processo de aperfeiçoamento constante, foi buscando e construindo acerca da essência da vida.

A sua grande inteligência analítica levava-o a observar e explicar a multiplicidade dos aspectos da natureza humana e do funcionamento/articulação da economia e da sociedade. Mas a sua elevada sensibilidade emocional levava-o também a buscar o elemento unificador e que dava sentido a essa realidade múltipla e complexa: o Amor a Deus. Uma das originalidades, e também uma das grandezas do Ernâni, foi a forma única como combinou razão e fé, e sobretudo, a maneira como as integrou enquanto elementos orientadores da sua vida quotidiana. E, aqui, a Família tinha lugar de privilégio.

 

 

Ernâni Lopes rodeado pela esposa, Isabel, e por todos os filhos e netos

 

Como ele próprio dizia: amava a Deus amando profundamente a Isabel e amando-a, amava os seus filhos e netos, portadores dos valores familiares, por natureza intemporais. Para ele não havia maior alegria que o nascimento de cada neto e de os ter ao seu lado. Falar da Família era falar do mistério ou do milagre da Vida. E esta era a grande paixão do Ernâni.

Não admira que as celebrações ligadas à Família fossem os momentos escolhidos por ele para exaltar, de forma fervorosa, assumida e pública, a sua admiração e louvor pela Obra da Criação. E fazia-o partilhando esses momentos de felicidade (na sua própria expressão "Mimos de Deus") de uma forma excepcional, com aqueles que constituíam outro pilar básico do seu relacionamento: os Amigos e os Afilhados. Nessas alturas, deixava transbordar toda a carga emocional, generosa e mesmo romântica, a alegria de viver e o seu imenso calor humano, que eram contrapontos naturais às suas, também naturais, formas de vida ascética e austera.

Por outro lado, o Ernâni tinha o imperativo moral de pôr os seus dotes intelectuais ao serviço da sociedade/país em que se integrava e, assim, servir também Deus. Daí a sua exigência de excelência a ser prosseguida através do estudo e do trabalho aprofundados. Isto levava, por vezes, a difíceis compromissos para não afectar a Família. Coerente com o seu pensamento de privilegiar esta, o Ernâni, contra o seu desejo e vontade, não aceitou o convite para ser o nosso primeiro comissário europeu após a adesão.

Para ele, a música era a forma de arte por excelência e que, aliás, melhor se ajustava à sua personalidade, como meio de exaltar o espírito e de sentir o belo e o sublime, manifestações da harmonia e perfeição divinas. Não será por acaso que a Isabel empresta a sua bela voz a um coral, que a Maria sua filha, para além de médica, oferece-nos o encanto do seu enorme talento como solista e que todos os netos do Ernâni, desde muito pequenos, se deleitam a tocar um instrumento musical.

A sua generosidade e afectividade comunicavam-se, de imediato, e surpreendiam muito daqueles com quem dialogava, seres humanos membros de uma grande Família, a dos Filhos de Deus. Que outro sentido atribuir à decisão do Ernâni de pertencer a duas Irmandades, a da Nossa Senhora da Escada e a da Misericórdia e de São Roque, a não ser o de partilhar a simplicidade própria das coisas profundas?

A Família era o imenso mar interior, um mar feito de afectos onde navegava o espírito multifacetado, invulgarmente rico e original dessa figura ímpar que era o Ernâni. É esse espírito e essa prática de vida que podem/devem servir de inspiração e de base de reflexão para todos nós, cada um à sua maneira, para serem transmitidos de geração em geração.
 

 
 

Abraão de Carvalho
15.º CFORN





Ernâni Lopes e o Mar

 

No passado dia 16 de Junho, o almirante Vieira Matias, antigo Chefe do Estado-Maior da Armada, e sócio honorário da Associação de Oficiais da Reserva Naval (AORN) proferiu, na Universidade Católica, em Lisboa, um discurso, que intitulou “Ernâni Lopes e o Mar”.

Dele transcrevemos a parte da sua intervenção sobre o papel desempenhado por Ernâni Lopes para o “desbravar” da argumentação, da teoria e da acção para edificar um novo conceito de aproveitamento das potencialidades do Mar Atlântico no incremento do país, quiçá, mesmo da União Europeia.

 “Ao logo do nosso conhecimento, percebi que o Ernâni Lopes, era um homem de convicções fortes, alicerçadas num processo de raciocínio metódico, laborioso e inteligente, desprezando sempre entusiasmos ligeiros. Por isso, rejubilei quando, há cerca de sete anos, vi que, aos por si identificados quatro domínios de maior potencial estratégico da economia portuguesa – turismo, ambiente, serviços de valor acrescentado e cidades – adicionou um quinto: a economia do mar.(sublinhando nosso).

 Isso significava que tinha estudado o tema e que, racionalmente, o considerava, de facto, como um domínio de grande valor prospectivo para a economia nacional, apesar de ser, como costumava afirmar “o que está no ponto de partida mais baixo”.

Contudo, também sempre acrescentava como o fez, provavelmente na sua última entrevista (publicação Cx de Nov/Dez 2010), que “O mar é o único domínio com carácter identitário … O mar não é só para tirar, extrair valor, é um elemento que nos define, que nos dá identidade”.

E acrescentou ainda: “Para Portugal a vocação Atlântica é o resultado do carácter identitário do mar. Em termos históricos, a vocação atlântica está no Atlântico Médio (polígono: Portugal Continental, Madeira, Açores, Brasil, Angola, S. Tomé e Príncipe, Guiné e Cabo Verde): um espaço enorme que fala português.

A vocação atlântica nasce aqui… A nossa vocação atlântica, do ponto de vista geopolítico, é onde vamos clarificar o futuro de Portugal … se o não fizermos, Portugal não tem papel”.

Foi a partir dessa visão abrangente sobre a importância do mar para Portugal que estruturou a ideia de um “cluster” da economia do mar, de que se vinha a falar no seio da AORN, fazia algum tempo. E foi nessa linha que, em 10 de Março de 2004, apresentou em conferência muito ansiada, no Palácio da Bolsa, no Porto, a logificação do “Hypercluster da economia do mar”. Esta acção, veio a demonstrar-se, foi decisiva para o lançamento do processo de Hypercluster.

Começou por ser como que a faina de largada do navio da AORN, com o Ernâni ao leme (é assim que o tratamos na AORN), para uma rota que iria passar por outras sete cidades do Continente e uma nos Açores, deixando em cada uma delas o saber de distintos conferencistas. Constituiu este peregrinar uma actividade de cidadania voluntária em que, seguindo o lema da AORN, “servimos sem esperar recompensa”. Foram tratados temas diversos, como construção e reparação naval, pesca, aquacultura e transformação do pescado, recursos da margem profunda, portos e transporte marítimo, turismo e recreio náuticos, investigação científica do mar, segurança e defesa, etc.

 

 

O Almirante Vieira Matias em conversa com o actual Presidente da Câmara de Cascais,
durante as "Jornadas para o Futuro" realizadas no Hotel Miragem em Cascais,
com o Prof. Dr. Ernâni Lopes, à direita

 

 

Esta navegação teve continuidade na empresa SaeR, gerida pelo Prof. Ernâni Lopes, onde foi, sob a sua orientação, desenvolvido um estudo longo e profundo, com a participação de dezenas de especialistas, que conduziu à publicação da notável obra “O Hypercluster da Economia do Mar”.

Foram anos de labor até este nascimento da “menina dos seus olhos”, mas valeu a pena. O estudo veio preencher um vazio enorme no domínio do mar e constitui uma verdadeira carta de marear, com os rumos a seguir para o desenvolvimento de cada um dos sectores da economia do mar.

Felizmente que a sociedade civil, através da Associação Comercial de Lisboa o está a procurar pôr em prática, com a adesão, para já, de cerca de 80 empresas.

As sociedades civil e política honrarão a memória do Ernâni Lopes, marinheiro e português, se implantarem na prática as valiosas medidas ali preconizadas, recuperando a economia do mar.

Estes breves traços da vocação e actividade de Marinheiro do nosso saudoso Amigo apenas visam complementar a sua talvez mais conhecida actividade de distinto professor universitário, de brilhante economista, de político providencial, de diplomata notável e, sobretudo, de cidadão verdadeiramente exemplar, sempre apaixonado pelo seu País e pela sua Família.

O seu amor a Portugal e aos seus valores impressionava-me muito. Mas, sobretudo, pela visão que emanava desse forte sentimento.

Por isso, quando em 2007, fui, por solicitação de um grupo de bons portugueses incumbido de organizar o “14º Encontro Nacional de Combatentes” sob o lema “Homenagear os heróis do passado com o olhar no futuro” convidei o nosso saudoso Amigo para proferir a alocução aos milhares de combatentes e suas famílias que, no 10 de Junho, se juntaram no monumento aos nossos mortos, em Belém.

Proferiu uma comunicação notável, densamente rica de conceitos, em que quis “honrar o passado”, “lembrar os feitos”, “preservar a memória”, mas com a ideia, a perspectiva de longo prazo, fazendo sempre a ligação entre passado e futuro. Constituiu um apelo constante para “encontrarmos os factos portadores de futuro e percorrermos vias de projecção afastando do nosso percurso colectivo a carga negativa da descrença e desânimo que vamos detectando na vida corrente actual” (10.JUN.2007).

Os Combatentes por Portugal, emocionados, ouviram-no terminar com o apelo: “Nós só seremos nós, quando formos além de nós”.

A vontade férrea, a inteligência, o saber e o amor a Portugal do Prof. Ernâni Lopes contribuíram, de forma determinante, para levantar, de novo, o nome do Mar Português, ou do Oceano Português, como mais gostava. Cabe-nos, aos que o apreciámos, dar continuidade ao seu esforço e trabalhar determinadamente numa afirmação de vontade colectiva por Portugal e pelo seu Oceano. Será a melhor forma de homenagearmos o Marinheiro que foi o Ernâni, repetindo agora o que já escrevi na *Revista de Marinha*”.
 

 
 

Nuno Vieira Matias,
Almirante (R)



 

Ernâni Lopes: Uma espécie de testamento político e não só
 

Em cima do seu falecimento, a última edição da revista da Caixa Azul, editada pela Caixa Geral de Depósitos, publicou uma entrevista com o Professor Ernâni Lopes, cuja leitura aconselho e de que deixo aqui algumas das partes mais significativas.

Intitulada “O guru da Nação” na entrevista fala-se da “frontalidade do que aprendeu depois de ter sentido a morte tão perto e da sua missão nacional.” Ao longo da entrevista fica a “visão de um português com vistas largas, com fé (com maiúsculas) na necessária articulação no espaço onde se fala português: Portugal, Europa, África e Brasil. Por aqui passará, nas palavras do guru da economia nacional, o futuro de Portugal.”

Ernâni Lopes aconselhou a investir nos cinco domínios que para ele eram fundamentais: cidade, turismo, ambiente, mar, desenvolvimento. Mas o Professor colocava o acento no “papel da cidade como gerador de riqueza e potenciador do desenvolvimento, o ponto de partida já lá está e arrasta todo o resto.”

 

 

Ernâni Lopes na sala de reuniões da SaeR

 

O mar também é importante porque dele “não é só para tirar, extrair valor, é um elemento que nos define, que nos dá identidade.”

Em seguida, propõe o aumento da produtividade e o incremento das exportações.

Depois fala da nossa “vocação atlântica”, dizendo que “em termos históricos, a vocação atlântica está no Atlântico Médio (polígono: Portugal continental, Madeira, Açores, Brasil, Angola, São Tomé e Príncipe, Guiné e Cabo verde): um espaço enorme que fala português. A vocação atlântica nasce aqui. Depois, há outra dimensão, no contexto da NATO, que é a ligação com os Estados Unidos, mas que Portugal explora muito pouco. A nossa vocação atlântica, do ponto de vista geopolítico, é onde vamos clarificar o futuro de Portugal; no quadro da lusofonia, na relação entre Portugal, Europa, África e Brasil. Se não o fizermos, Portugal não tem papel.”

O facilitismo alastrante
 

Critica em seguida o “facilitismo alastrante”, para acrescentar que considera “este facilitismo absolutamente inaceitável, como pai, avô - bisavô não chegarei lá. Há, por outro lado, uma incapacidade ou uma vontade colectiva de não transmitir exigência, conhecimento, disciplina e rigor.”

Sobre o ensino diz que “ensinar é dar-se. É dar-se a si próprio, é algo irrepetível. Esta noção é inseparável do acto de ensinar e aprender…Temos de valorizar os professores de qualidade e que vivem a vida nesse acto de transmitir e de se darem e, ainda, de perceber que é a actividade mais nobre do ser humano. Importa referir que há muita gente boa em Portugal, mas que não se vê.”

E sobre a forma como se fazem os negócios em Portugal, onde “vale tudo para enriquecer de qualquer maneira e depressa” à custa de golpes “ordinarecos”, Ernâni Lopes é peremptório: “Ninguém leva nem o que sabe nem o que tem. Já pensou nisso? Todos levaremos a consciência das acções que praticámos. Creio que alguns de nós, que temos a graça da fé (com maiúsculas), têm a felicidade de saber que nos iremos apresentar tal como somos face a Deus todo-poderoso e eterno. O eterno e o infinito são o que fica, naquilo que conta, que é o plano espiritual. Todo o resto não conta. Seria uma gigantesca gargalhada colocar algumas décadas de vida biológica em comparação directa com esse plano. Não me faça rir...” Desta forma respondeu a muitos que questionam a sua religiosidade.

 

 

Ernâni Lopes com os livros da série "Portugal - Desafio nos Alvores do Séc. XXI", do semanário Sol, cujos trabalhos coordenou.

 

E sobre a sua doença e a energia que, apesar disso, revela, esclarece que tem “uma visão muito distanciada - sobretudo, nos últimos dois anos -, muito mais profunda da vida, pela única razão de que estive quase morto. A minha vida foi salva por uma das minhas filhas, quando percebeu que eu ia morrer e me levou para o IPO. Estive um mês e meio sem saber se morria, se ficava vivo. Hoje, olho para as coisas com um distanciamento e uma profundidade muito maiores. Sei desde há muitas décadas e verifico, permanentemente, que o homem é o único ser vivo que tem a capacidade de trabalhar conscientemente, porque os outros ou não trabalham ou trabalham por instinto: as abelhas, as formigas ou, forçado, o burro na nora ou na carroça. Nós trabalhamos conscientemente, uns com mais gosto, outros com menos. É inequívoco para mim que o homem com essa capacidade é o único ser vivo que pode colaborar na obra da criação. Sendo certo que esta obra não é um ponto de partida, é algo que se constrói ao longo do tempo. Quando trabalhamos, temos a consciência de que estamos a cooperar na obra da criação.”

E para ele isto era o trivial da sua vida, segundo referiu a dado passo da mesma entrevista, uma vez que o “trabalho não é um peso, é um acto de dimensão espiritual absoluta, porque estamos a cooperar com Deus. Eu não preciso de mais nada. Basta olhar para o mundo e compreendê-lo.”
 

Um homem de fé e um cidadão honesto
 

Humildemente, não se considera nem um guru, nem um profeta, mas “seguramente, um cidadão honesto que estuda e trabalha, um pai de família que ama Portugal.”

Na restante parte da entrevista Ernâni Lopes manifesta o seu entusiasmo com as obras que no âmbito da Saer ainda estavam a ser preparadas para publicação brevemente. E termina dizendo que a definir um “desígnio” nacional ele seria o mar. “De entre os cinco domínios de potencial estratégico, o único que justifica a qualificação de «desígnio» é, para mim, o mar.” Embora afirmando que não estará cá para ver, disse que deu o seu esforço “para que Portugal saiba afirmar-se no plano internacional, que saiba articular a posição que tem na Europa com a posição no Atlântico e no mundo…É o maior desafio desta geração. Daqui decorre a afirmação e o desenvolvimento de Portugal.”
 

 
 

António Caseiro Marques
21.º CFORN


 


Um príncipe de Portugal
 

Conheci o Ernâni (como era tratado, com um misto de grande respeito e grande carinho), como seu aluno no ISEG, em 1971, tendo, posteriormente desde1988, tido o previlégio de trabalhar com ele, primeiro apoiando-o na constituição da SaeR (fruto da sua visão estratégica, inicialmente como Agência Rating e, posteriormente, como consultora em Prospectiva, Geopolítica e Estratégia) e uma das suas “meninas dos olhos” e, a partir de 2004, como seu sócio na SaeR e na Companhia Portuguesa de Rating.

Como acontecia com todos os que com ele lidavam, o Ernâni marcou-me. Quanto mais trabalhava com ele e melhor o conhecia, maior era a minha admiração profissional e pessoal por ele. E devo confessar que não me considero muito influenciável por personalidades!

Ernâni marcou-me a mim e a várias gerações de alunos e de colegas. Falar no Professor Ernâni Lopes é falar, para os economistas portugueses, numa grande referência.

Era, de facto, uma pessoa singular, um “fora de série”. Nunca alguém ficava indeferente perante o Ernâni, o seu saber, o seu rigor, a sua clarividência e a sua força.

 

 

Encontro SaeR 2006 - "A Globalização Competitiva e a Resposta das Empresas"

 

Era um homem de causas. Sempre me admirou a sua capacidade para conjungar a Fé e a Razão. Amava Portugal e dizia-o!

Não foi por acaso que esteve nos momentos mais marcantes da história recente da economia e da sociedade portuguesas: foi diplomata em Bona (com pouco mais de trinta anos num país fundamental para a construção europeia); foi o grande conceptualizador e executante da integração de Portugal na Europa (como Chefe de Missão, teve a responsabilidade pelo processo de  integração de Portugal na CEE) e, por circunstâncias do destino, foi um dos assinantes do Tratado de Adesão, em 1986; foi, ainda, teorizador e professor de questões europeias e da economia portuguesa;  como Ministro das Finanças, retirou Portugal da bancarrota, em 1983, e colocou Portugal na CEE, em 1986 (em três anos, o que revela as suas capacidades excepcionais de clarividância e liderança).

Era extremamente rigoroso (nos tempos, nos conteúdos e nas comunicações) em tudo onde se envolvia. Era um pensador livre e independente. Adorava discutir, criar grupos de reflexão, era um bom ouvinte e, no final, era a opinião que ele formava e transmitia que passava a contar!

Era um homem corajoso: nunca notei qualquer situação que revelasse medo. Até perante a morte que enfentou com enorme dignidade. A sua força, sobretudo moral era também singular: já em período em que estava muito doente e após sessões de quimioterapia extremamente desgastantes, chegava a dar conferências e aulas de quatro horas!

 

 

Encontro SaeR 2008 - "Relações Portugal/Brasil. Novas Realidades/Novas Respostas"

 

Como sócio, era como nenhum, pelas ideias, pelo trabalho e pela confiança. Um caso raro: na SaeR, por decisão dele como sócio maioritário, qualquer sócio-gerente podia tomar qualquer decisão, a qualquer nível. Tal era o nível da confiança!

 Deixou muitas ideias para serem continuadas, desde os domínios com potencial estratégico para a economia portuguesa, a questão estratégica fundamental da Lusofonia e do triângulo Europa-África- Brasil, o Mar e a Economia do Mar como desígnios nacionais, etc... Deixou grupos de reflexão, desde a SaeR, aos Estudos Europeus na Universidade Católica, ao Círculo de Reflexão Lusófona, entre outros....

Dizia que só podia ter sido três coisas: soldado, monge ou professor. Eu sei que, por tudo o que foi e fez, foi, sim, um Príncipe de Portugal.
 

 
 

José Poças Esteves

 

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