O Almirante
Francisco Ferrer Caeiro ligou-se profundamente à
História da Marinha na Guiné e não apenas
enquanto Comandante da Defesa Marítima daquele
território, entre 1964 e 1967, creditando-se
como uma figura marcante da História da Reserva
Naval.
Tive o privilégio
de, por duas vezes, servir sob o seu Comando: a
primeira em 66/67 enquanto Comandante da Defesa
Marítima da Guiné, a desempenhava eu as funções de
Oficial Imediato no NRP “ORION”, LFG
atribuída àquele Comando; a segunda, de 68/70
enquanto Comandante Naval do Continente e da
Base Naval de Lisboa, na sua directa
dependência, como oficial ajudante de ordens.
Durante anos,
conservei sempre na memória a imagem de uma
personalidade tão simples e humana quanto
determinada e imprevisível, embora de
controverso perfil; também algumas histórias de
caserna inesquecíveis a que atletismo e humor
militar com estrelas se aliaram sempre.
Confesso que,
passados que foram mais de duas décadas após o
último contacto, a primeira vez que o procurei,
mais do que receoso ou intimidado, sentia-me como que na
situação de ir repetir o exame de uma cadeira em
que já tinha sido aprovado pelo “mestre”.
Pura imaginação
minha já que amizade, camaradagem e
disponibilidade foram, ao longo de alguns meses
de relatos e recordações, as tónicas do
relacionamento reatado em diversos encontros que
com ele tive.
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O Vice-Almirante
Francisco Ferrer Caeiro, no seu salote,
redige o texto-dedicatória de entrega
das suas medalhas e condecorações,
incluindo as Asas de Prata da Aviação
Naval. |
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O Vice-Almirante
Francisco Ferrer Caeiro,
em Bissau - 1967, a bordo da LFG "LIRA",junto
à peça de popa,
com um grupo de oficiais da Reserva
Naval. |
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Em 22 de Junho de
1999, numa iniciativa pessoal e com total
autonomia de representação por parte da AORN –
Associação dos Oficiais da Reserva Naval, em
mais um encontro informalmente marcado na sua
residência prontificou-se, amavelmente, a
responder a algumas questões que tinha agendado
previamente para lhe colocar. A isso se
prontificou de forma familiar, com a habitual
amizade e frontalidade:
MLS - Como analisa o
percurso comum efectuado com a Reserva Naval
entre 1957 (ano de fundação) e 1980, quer do
ponto de vista de estratégia quer do ponto de
vista de integração?
Alm F.C.
- "É muito simples. As impressões que colhi
nessa altura são as que prevalecem actualmente.
Nos oficiais da
Reserva Naval com quem lidei em variadíssimas
situações, desde o comportamento em combate até
à postura nos salões da diplomacia que a Marinha
se orgulha de pisar o melhor que pode e sabe,
encontrei sempre a melhor resposta que poderia
obter.
Julgando estar a
interpretar a verdade dos factos que tão
importante é para mim, e tendo em conta a fama
de “mau” que granjeei, arrisco afirmar que os
oficiais da Reserva Naval que comigo conviveram
e serviram, não colheram essa impressão da minha
pessoa.
Sempre me dei
muitíssimo bem com esses rapazes.
Nunca me divorciei
da juventude, até porque nessa altura estava bem
próxima da minha própria juventude; através de
um dos meus filhos, senti a crise académica, a
confusão, o descontentamento.
Servindo o País como
eu servi, considerei sempre como componentes do
dever militar a disciplina e o sentido de
justiça, procurando, em cada situação,
distinguir o trigo do joio. Foi necessário
articular esses conceitos garantindo que o País,
em guerra, prosseguia o seu caminho com
dignidade. Foi com este sentimento que recebi a
entrada dos Oficiais da Reserva Naval."
MLS - Como
avaliaria, para ambas as partes, a integração na
Marinha de Guerra Portuguesa de um universo de
quase 3.000 oficiais da Reserva Naval, oriundos
de todas as áreas profissionais que, ao longo de
quase 40 anos, desfilaram pelo quadro dos
Oficiais da Armada?
Alm F.C.
- "Bem depressa me apercebi que os oficiais da
Reserva Naval se enquadravam totalmente nos
objectivos que prossegui no desempenho das
minhas funções. Entendíamo-nos perfeitamente e,
as pequenas discrepâncias que existiram
resultaram tão somente de diferenças de
personalidade normais no convívio entre seres
humanos. Esses rapazes eram praticamente da
geração dos meus filhos, com pouca diferença.
Comportaram-se sempre com a Marinha de Guerra de
uma maneira digna, ao contrário talvez daquilo
que ouvia comentar a camaradas meus do Exército
e da Força Aérea. Eram e sempre foram uns tipos
“pacholas”.
Tudo isso se elevou
a um nível extraordinário de grande admiração,
de grande consideração durante a guerra (do
Ultramar) na Guiné. O que aqueles rapazes foram
na Guiné não tem paralelo: houve uma dedicação
total e levaria talvez algum tempo a espraiar
aquilo que passámos juntos e que não cabe aqui
relatar. Os rapazes dos Fuzileiros então foram
mesmo meus filhos."
MLS - Permite-me
recordar-lhe o episódio atrás relatado sob o
título “ À margem da entrevista” e comentá-lo?
Alm. F.C. -
"Está a contar factos que induzem demonstrar
que eu não era, afinal, “a fera” que se dizia.
Era bem diferente disso. A selecção desses
factos mostra, só por si, o propósito que o
trouxe hoje até mim e o dever de lhe estar muito
agradecido, a si pessoalmete e à AORN, porque é
através de provas dessa natureza que se consegue
demonstrar que, muitas vezes, conclusões
transcendentes devem ser tiradas de factos
aparentemente simples. Só por isso, faço questão
de lhes mostrar, a todos, a minha gratidão.
Não quero com isto
dizer que todos os factos da minha vida sejam
assim tão aleatórios quanto esses. Como toda a
gente, tenho pecados que lastimo. Lastimo mas
não os renego com a facilidade que normalmente
temos em renegar as asneiras que cometemos. É
melhor assimilarmos as asneiras como asneiras
que foram porque, como alguém dizia, essas
asneiras “falaram a tempo” e vieram trazer
elementos para uma justiça que nós próprios
desejamos."
MLS - Numa carreira
militar com uma vertente invulgar na Aviação
Naval somando, para lá de outros aspectos, 3412
horas de voo, pode transmitir-nos algo dessa
experiência?
Alm. F.C. -
"A dificuldade é responder em extensão
aceitável. Isso representa na minha vida algo
que só não considero a mais importante faceta
dessa mesma vida porque tenho que pôr, acima de
tudo, a minha família e, sobretudo, a minha
mulher. Acho que não consigo compreender a minha
vida desligada desses elementos. Também não
posso dizer que esses factos foram os mais
importantes por que tenho medo de estar a
cometer uma injustiça para com a Marinha de
Guerra. Antes de ser aviador quis ser
marinheiro! Depois de ser marinheiro, fui
aviador! Com muita vocação, muito entusiasmo mas
não quero estabelecer comparações: é quase como
perguntarem-me de qual dos meus dois filhos eu
gosto mais. É impossível responder!
A Aviação e a
Marinha são as minhas mães: a aviação, com
aspectos muito particulares, teve para mim algo
que me prendeu de uma forma muito especial,
tendo de confessar, com tristeza e até com
receio, poder estar a atraiçoar o que, na minha
vida, foi sempre mais importante.
A Marinha foi sempre
uma cadela para a Aviação Naval! Desculpe o
desabafo mas trata-se da vontade de ser exacto,
correcto e justo. Elas foram sempre irmãs e
continuam a sê-lo, mas essas duas mães que tive
nunca se entenderam e a Marinha tratou sempre
com profunda injustiça a Aviação Naval.
Como dizia o
Sacadura Cabral “a Marinha não gosta de gostar!”
nem da sua própria irmã que era a Aviação Naval.
Esta é a explicação mais benevolente que posso
encontrar porque, na verdade e infelizmente, o
meu mau fundo diz-me que a origem foi outra: a
Aviação Naval ganhava mais uns tostões que não
eram nada, comparados com o facto de 25,6% dos
pilotos que para lá foram morrerem em desastres
de aviação."
MLS - O Museu da
Reserva Naval é hoje uma realidade em curso,
embora ainda com algumas limitações de espaço
que não permitem à associação expôr e conservar
devidamente todo o enorme espólio disponível:
documentos, fotografias, equipamentos,
artesanato, condecorações,...A AORN, associação
que representa a Reserva Naval, veria com todo o
empenho aliado ao prestígio que tal traria à
nossa Instituição, que o Sr. Almirante estivesse
representado no nosso Museu com algo cujo
significado mantenha viva a recordação das
largas dezenas de oficiais da Reserva Naval que
directa ou indirectamente desfilaram pelas
Unidades que dirigiu ou comandou. Posso deixar
esta possibilidade em aberto para consideração
do Sr. Almirante?
Alm.F.C. -
"Com certeza. Para já a minha motivação é a mais
forte e sentimental por aquilo que já lhe disse.
A maneira como isso poderá acontecer é que não
me ocorre de imediato. Falta-me o engenho e arte
para resolver isso já. Tenho receio de que o que
eu decida possa ser considerado uma forma de um
indivíduo se gabar a ele próprio.
Ao fim ao cabo,
ninguém me gaba melhor do que eu!"
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